domingo, 27 de setembro de 2009

As rosas silenciosas

No dia 6 de Agosto de 1945, ao final da Segunda Guerra Mundial, a cidade japonesa de Hiroshima foi desnecessariamente bombardeada pela força aérea americana. Três dias mais tarde seguiu-se o bombardeio de Nagasaki. Sua justificativa era forçar a rendição do Japão, porém, o que ficou evidenciado era que ambas faziam parte de uma verdadeira demonstração de força do armamento nuclear dos EUA. O mundo silenciou de vergonha e de pavor; silenciou para lamentar e refletir.
Passaram-se mais de 60 anos do ato que gerou a morte de mais de 250.000 pessoas.
Hoje, durante esse tempo, temos a impressão que o sîlêncio que antes significava repúdio, nada mais foi que a incubadora de novas idéias. Para que tanto barulho? As bombas não foram desativadas ou deixaram de existir. A maldade e ânsia pelo poder não se foram; apenas mudaram suas vestes, camuflaram seus uniformes.
Do silêncio veio a solidão e o afastamento das pessoas, veio o desamor e o descaso, veio uma nova e estranha conduta de pais e educadores - com gerações de jovens morrendo silenciosos diante da infâmia da droga - uma das novas rosas silenciosas que não fazem escândalos, mas nem por isso são menos devastadoras, ao contrário. As novas rosas não queimam e sua radioatividade tem outro aspecto, não menos contagiante. Drogas, não compaixão e indiferença estão entre suas espécies e matam milhares de vezes mais do que foi Hiroshima e Nagasaki.
E, a cada dia, nossos olhos tornam-se mais frios, nossos sorrisos mais ortodônticos e photoshópicos, nossas atitudes mais omissas, diante de cada "bomba" lançada sobre um ser humano. Cada dia mais, aprendemos a dizer adeus aos nossos amigos, um dia adolescentes e cheios de vazios e ausências. Aos nossos filhos e amores também. Na arte de viver, nesses tempos, inteligência e inclemência são rimas tragicamente perfeitas.
É preciso entender que é tempo de sorrir, de compartilhar, de estar junto. Tempo de não ser ainda mais seres de pedra. Tempo para gritar de revolta, de vergonha, de basta - para poder, um dia gritar pela alegria de educar crianças e adultos para um mundo mais livre e mais feliz. Soltar a voz num canto maior. Abolir o silêncio, matando a síndrome do medo de dizer eu amo você. Para um pássaro, um amigo, um amor especial ou mesmo para um céu bonito.
Que os nossos pequeninos gestos - cada um deles - sejam a entrega de outras rosas. Rosas de zelo, de sensibilidade e de querer bem a cada ser vivente. De eterna primavera.
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texto: paulo moreira
imagem: find 3D xp - u.s.a.
consulta de tema: shvoong

segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Gratidão

Aos 17 anos, Geraldo Moreira colocou a Floriza na garupa do seu cavalo e resolveram sair pelo mundo. Deixaram para trás o Anjão – marido da formosa – que ficou desconsolado ao ver que ela partia, sem sequer pronunciar um sinto muito.
Aos 30 anos, Floriza descobriu o amor que, em mais de 12 de casada, ainda não havia descoberto. Por sua vez, o Geraldo descobria que uma mulher vivida sem ter vivido, tinha muito amor guardado em si.
Pior foi que, na partida, Geraldo teve a petulância de enfiar o dedo em riste na cara do Anjão, dizendo:
– Escuta aqui! Nem pense em nos seguir ou procurar, pois que, senão faço a moça viúva, tá entendendo?
E tem outra:
– Amigo bom não se magoa!
Anjão só soube dizer:
– Cuide bem da Floriza, Geraldo. Por favor, cuide bem da minha Flor...
– Cuidarei, Anjão, pode deixar. Até algum dia!
Floriza não deu um gesto, não disse palavra e nem olhou para trás; o que só serviu para aumentar ainda mais o estrago no peito do Anjão.
Desde então, o Anjão tomava todas. Pegava a rabeca e cantava tristonho uma canção tão chata e sem fim quanto a ausência da Floriza. Noites que pareciam eternidade no inferno.Tadinha da rabeca! Nem a Floriza, em 12 anos, foi tão esfregada.Fosse um tamborim, haja gato!
Mas, palavra dada, palavra cumprida.
Depois de uns 6 meses, voltava Geraldo com a Floriza, sorridente e barrigudinha, ao quintal do assombrado marido.
– Toma, Anjão, recebe tua mulher maravilhosa. Ah... linda Floriza. Grande mulher... como mãe vai ser melhor ainda! Cuida bem do teu filho, que deve nascer daqui uns 2 meses. Parabéns, paizão!
Bonito ver o Anjão, pai sem igual, repetindo por muito tempo a quem quisesse ouvir :
– Deus abençoe o Geraldo! Homem bom demais! Foi ele quem trouxe de volta a minha Flor do Amor!
Só que o Anjão foi duríssimo na atitude e não deixou por menos:
Por desaforo, quebrou a malvada rabeca! Para nunca mais lembrar aquela maldita musiquinha!

texto: paulo moreira (do livro "perfume de coração")
imagem: funpic - hungria

quinta-feira, 17 de setembro de 2009

Mãos sem perdão

Perdoe minhas mãos.
Certas mãos não sabem o que fazem. Deveriam ser de carinho, mas foram apenas aquelas que deixaram marcas e que sufocaram; que asfixiaram almas. Deveriam amparar e serem guias; no entanto, abandonaram num labirinto.
Perdoe minhas mãos por serem assim.
Apontam e atacam, quando deveriam guardar e ser mãos que trabalham. Antes que alívio, trazem a dor, fazendo de seus afagos, as feridas. Antes que aconchego, fomentam o desespero. Que, ao invés de carregarem um coração, impõem-lhe a mágoa.
Perdoe essas minhas mãos.
Criadas para serem mãos de cura, causam doenças, contaminadas por vírus de desatinos. Mãos descuidadas que não mais recebem – apenas jogam fora. Que preferem um aceno de adeus à alegria de receber na chegada. Mãos de partida. De desengano.
Perdoe a frieza de minhas mãos.
Por saberem que foram feitas para intervir nas discórdias, mas escolhem bater. Por só levarem o alimento à boca que lhes pertence e a ninguém mais. Mãos feitas para plantar, porém, descuidadas, perdem sementes pelo caminho. Que transformam as terras que lhes são dadas ao plantio do amor, em vastos desertos estéreis e de decepção, dos quais subverte as areias, regando-as com lágrimas.
Perdoe-me.
Por não saber usar ou conter as mãos insanas. Por não unir as mãos para uma prece sequer. Por, ao invés de oferecer o anel da aliança, ter amputado a delicadeza dos dedos de sua alma e lhes infligir a paralisia dos gestos.
Perdoe essas mãos setenta vezes.
Por não saberem construir o que puseram abaixo. Pela covardia de não conseguirem por fim em seu próprio desvario e repousarem no peito.
Perdoe essas mãos que não sabem sequer rogar perdão.

texto: paulo moreira
imagem: photoforum.ru - rússia

domingo, 6 de setembro de 2009

A superstição do celular

Entre uma escola e outra, no meio do caminho, vinha a professora com um repentino e “esquisistranho” pensamento que, feito um pernilongo, começou a incomodar.
Não era supersticiosa, mas passar debaixo daquela escada do pintor no pátio no exato momento em que ele concluía uma letra Z no novo letreiro da escola, não a deixou bem.
- Ah! Bobagem, superstição!
Continuou em seu raciocínio. Semana que vem chegaria 11 de setembro e onze é um número esquisito. Onze é número primo. Não. Pensando bem, onze é um número gêmeo. Número primo é um que só se divide por 1 e por ele mesmo e o onze é assim, mas ele é parente mais próximo que um simples primo. Só pode ser gêmeo e, ainda por cima, daqueles univitelinos. Deve dar azar também, porque foi no dia 11 de setembro aquele caso das torres gêmeas. Número infeliz. Tipo do numerozinho egoísta que só se divide a “sipóprio” e, quando se divide, ao invés de restos - deixa escombros. Não se lembrava direito se aquele número era racional, natural, inteiro (inteiro não podia ser) e acabou, apesar da vaga lembrança das aulas de matemática, com uma conclusão brilhante:
- 11 é um número gêmeo, que não se divide por nada, exceto por boeings; faz parte do conjunto dos números irracionais, impossíveis e inacreditáveis, muito bem representado por “iih” (iih! Deu errado de novo!).
Precisava parar de pensar aquelas bobagens. Estava parecendo pesadelo de véspera de prova na faculdade. Tentou lembrar se suas provas caiam sempre no dia 11 e, quanto mais procurava lembrar, mais o dia 11 se fazia presente. Chegou a se convencer que se casara num dia 11 e questionou-se se não era novembro – 11/11 – Deus livre e guarde!
- Ah! Bobagem, superstição!
Afastou seus pensamentos como quem afasta pernilongos e, depois do primeiro tapa na orelha, já nem se recordava de mais nada. Continuou seu caminho, chegando à escola para mais uma jornada. Feliz com seus aluninhos, ouviu o sinal do intervalo e dirigiu-se para a sala dos professores para seu merecido cafezinho e descanso. Hora também de ligar para o marido para a atualização de broncas do dia anterior “Parte II” (a Parte I era sempre no horário do almoço). Sorriu, divertida, com a idéia de que, se o cachorro é o melhor amigo do homem, o da mulher é o celular. Ao abrir a bolsa, qual não foi a surpresa: alguém abrira sua bolsa e levara seu fiel amiguinho - Totó Nokia.
Frio na espinha, arrepio, tremedeira. Sem se dar conta ainda por completo da situação, lembrou-se de uma coisa que sempre dava certo nessas horas:
- São Longuinho, São Longuinho, se encontrar meu celular dou 3 pulinhos! Dou 30; 3 é muito pouco. Desculpa São Longuinho, sei que o celular vale mais... tá bom... 300 pulinhos!
Mas, dia útil e horário de trabalho, São Longuinho podia estar muito ocupado e, por via das dúvidas, o melhor era sair perguntando se alguém o vira. De imediato notou que o melhor amigo do homem pode ser mais rústico, mas basta chamar pelo nome, que aparece. Percebeu então sua genialidade. Correu para a secretaria e pediu que ligassem para o Totó. Ao ser questionada sobre o número, verificou que, desde há muito, esquecera o número. Procura daqui, procura dali, achou uma amiga que ligava sempre e forneceu de imediato. Suspense... a idéia não podia falhar. Sorriu quando atenderam. Mas, descobriu que a felicidade é algo muito transitório e fugaz quando aquela sensual voz feminina disse:
- Claro informa: o número discado está desligado ou fora de área. Deixe seu recado na caixa postal... A Claro agradece, é Claro!
- Claro! Claro! Claro que quem levou o Totó não iria atendê-lo. Meu Deus, como sou Tonha. Tenho mais uma alternativa: a Diretora. Pensamento feito, pensamento executado. E a diretora:
- Tem certeza que estava mesmo em sua bolsa? Não o esqueceu em casa?
- Claro! Sem trocadilho diretora, tenho certeza. Antes de começar minhas aulas xinguei meu marido por telefone, inclusive fiquei nervosa porque no meio da bronca ele começou a imitar toque de ocupado: “pim – pim – pim... seu amorzinho tá fora de área, depois a gente se fala”. Tem hora que ele é tão bobo...
A diretora não teve dúvidas e falou bem alto:
- VAMOS FAZER UM BOLETIM DE OCORRÊNCIA! AVISA PARA A PORTARIA QUE NINGUÉM ENTRA OU SAI SEM AUTORIZAÇÃO. AVISA TAMBÉM QUE ELE SÓ DEVE ABRIR EXCEÇÃO PARA A VIATURA POLICIAL. Portaria sempre é bom dar a ordem bem explicadinha... Vamos ligar para a polícia.
Ordem dada, ordem cumprida. Ninguém entrou nem saiu. Só o policial. Tudo registrado, tudo documentado, tudo esclarecido e explicado. Só o Totó Nokia permanecia desaparecido.
Enquanto isso, nossa triste professorinha continuava sua aula, já sem muita animação, embora firme na sua tarefa. Pensava com seus botões:
- Eu tinha certeza. Minhas premonições não falham e sou capaz de apostar que no dia 7 de setembro, vou ter que desfilar debaixo de chuva. Número 7 é tão esquisito quanto o 11. É um número meio místico e, com a sorte que estou, é capaz de bem no meio do desfile e do Hino da Independência - o que abra as asas sobre mim - seja algum teco-teco perdido por causa da chuva. Droga, todo 7 de setembro chove...
- Ah! Bobagem, superstição!
Só que tremeu, ao lembrar-se de uma advertência do marido:
- Dar bronca em quem se ama, depois do almoço, dá indigestão. É mais perigoso que tomar banho de barriga cheia ou cafuné depois do almoço. Dá um azar danado!
Seria praga? Praga de marido pega mais forte que o de mãe. Rogou à Nossa Senhora do Patrocínio uma ajuda, mas parecia que a situação tivera o patrocínio da Claro mesmo. Antes eles sumiam só com o sinal; agora, parece que resolveram sair da abstração da linha e ir direto ao assunto. Imaginou ter ouvido uma voz do além dizendo que acharia logo o bem que lhe houvera sido subtraído.
- Ah! Bobagem, superstição!
Não demorou meia hora, chega uma aluna com o aparelhinho na mão:
- Achei fessora, achei.
E a menina havia mesmo encontrado, debaixo de uma pedra, num buraco pelo canto da escola.
Dessa forma, todos continuaram felizes para sempre.
A professora não esqueceu de ligar para o marido:
- Amor, levaram meu celular, mas já o encontrei. Só liguei pra dizer que te amo mais do que nunca e prometo te dizer isso todo dia na hora do almoço.
A diretora feliz por ter, a seu ver, resolvido a situação. Apenas achou engraçado ver a professora pulando com as crianças e dizendo para continuar a brincadeira do canguru que pula 300 vezes. “En passant”, falou para a professora:
- Você teve sorte de reencontrar seu celular.
Riu divertida, e emendou brincando:
- Pensei até em fazer alguma simpatia a seu favor... Parece coisa do Saci-Pererê. Você acredita nessas coisas?
Ouviu daquela mocinha toda segura de si:
- Ah! Bobagem, superstição!
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texto: paulo moreira