domingo, 29 de novembro de 2009

Uma vez, um verão

Nem pergunte o verão, pois não saberia responder. Só sei que faz tempo, muito tempo. Deveria ter uns 14 anos e, com o Rogério, resolvemos ir juntos numa excursão para Bertioga. Não conhecíamos ninguém, exceto Dona Iracema da igreja do padre Zé, que fizera o convite e, diante do preço bom e das perspectivas, resolvemos nos divertir. Para adolescentes tudo é aventura. E algumas aventuras costumam ser inesquecíveis.
As pessoas foram chegando pouco antes das 5 horas, o horário combinado. Deveriam ser uns vinte e havia gente de todo tipo e idade. Quando o ônibus chegou, um casalzinho subiu depressinha e ocuparam duas poltronas estratégicas lá do fundão, onde desapareceram imediatamente entre elas. Umas quatro senhoras de uns 70 anos acomodaram-se nos bancos da frente e, eu e Rogério esperamos sentarem-se as irmãs – Silvana, a loira e Silmara, a ruiva – filhas lindas de um juiz de direito, que todos os dias as levava ao colégio num opala preto e imponente do Tribunal de Justiça. Sentamos nos bancos atrás dos delas, na esperança de uma chance, nem que isso custasse uma condenação de 10 anos por assédio. Aos 14 ou 15 anos, nunca se sabe, mas valiam o risco.
Nisso, entram quatro grandões já oferecendo a todos um golinho da batida de vinho com abacaxi (eram 4 garrafões, dava pra todos). Mais uns casais de pais de algumas crianças com as próprias; umas cinco, acompanhadas de uma bola de plástico enorme. Naquela época essas bolas enormes eram um sucesso na praia. Não esqueceram as petecas, nem as raquetes de frescobol, claro.
Uma trintona encalhada, já famosa no bairro, com uma bíblia para distrair-se durante a viagem, sentou-se atrás de nós, ao lado de um crioulo com uns dois metros de altura e sem os dentes da frente, porém, com um sorriso muito fácil. A distância entre um canino e outro, enormes, parecia uma ponte apenas com as extremidades; o vão livre lembrava um “canyon”.
A princípio mostrou-se assustada, mas com o tempo, e umas goladinhas da batida, ela parecia até estar disposta a trocar umas idéias com ele.
Por fim, um grupinho de moços e moças munidos de amor, violão, pandeiro e reco-reco de bambu. Alegria garantida ou sua viagem de volta!
- Ebaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
O ônibus fechava suas portas e começava ali nossa ida à praia. Com direito a tudo.
Não passou muito tempo, começava aquela música que nos acompanharia a viagem toda:
- Num posso ficar nem mais um minuto com você... sinto muito amoooor, mas num pode seeer... moro em Jaçanã... se eu perder esse trem que sai agora, às onze horas... só amanhã de manhã.
Enquanto isso, a bola enorme ia e voltava dentro do bus; o garrafão seguia um trajeto parecido; os namorados do fundão soltavam uns suspiros e uis; as senhoras falavam da vida alheia; a trintona se engraçava com o negão e o Rogério tentava algum assunto com as filhas do juiz. Em plena descida da serra mais da metade das cabeças já giravam mais que a bola.
- ...e além disso, mulher, tem outras coisa....minha mãe num dorme enquanto eu num chegar...
Uma senhora comentava, entre amendoins, que tinha medo de atravessar na “barsa” e, ouvia a outra respondendo:
- Falar nisso, comprei uma dessas encicropédia pras criança. Diz que num tem melhor que a balsa.
Até a chegada na praia.
-Ebaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaaa
Quatro crianças, então, entaladas na porta junto com a bolona. Quase dez minutos para conseguir descer alguém, entre sacolas com frangos e copinhos de batida de vinho com abacaxi, agora já bem mais quentinha. E o casalzinho ainda lá atrás, esperando talvez alguma coisa se acertar...
De repente, o ritual da chegada: se esticar todo e abrir os braços para o mar e o céu:
- ETA MARZÃO BESTA!
Como diria o Ziraldo.
Novo entalamento. A maioria lembrou que, na praia, bom mesmo é tirar a roupa de cima e deixar surgirem as sungas, calções, biquínis e maiôs Catalina de rendinha. Praia é pra ser aproveitada o mais rápido possível. Tiradas as roupas, todos foram curtir sua areia, inclusive o casalzinho com um ar meio cansado.
Entre os moços e moças, mãozinhas já se juntavam para espantar o medo das ondas. Após algum tempo, as velhinhas olhavam espantadas os pares bem grudadinhos (os homens apertavam bem suas parceiras para espantar o medo) e não demorou muito para uma mais desbocada perguntar:
- Essa coisa que veio do mar e grudou no meu maiô deve ser alga. Ou não? Que porra é essa?
E a outra rindo:
- Acertou na mosca, querida! Pois é!
Silvana comentava com Silmara:
- Precisava ter vindo com biquíni branco? Está tudo transparente. Você num tem vergonha?
- Vergonha eu tenho. O que num tenho é outro biquíni. Mas, ainda assim é mais bonito que biquíni de oncinha.
- Melhor de oncinha, que de tarântula!
E os garrafões de batida se bronzeando junto às toalhas, entre comentários de que, com a maresia, bebida alcoólica nem se atreve a subir. Os casais se “protegendo” juntinhos das ondas. O motorista do ônibus de pé na calçada - de calça azul marinho, camisa branca, gravata da cor da calça e cara de quem toma conta de tudo. Dona Iracema fazendo anotações e contas; de maiô e papel molhado. Meu amigo e eu cuidando dos bichinhos do zoológico, sem tirar os olhos. As crianças com a bola e as velhinhas arfando com o emocionante jogo de peteca. Os homens no frescobol e batida e o casalzinho, pra variar, lá no fundão do mar - bem longe. Ele parecendo que tinha se preparado para camping. Sua barraca ficou armada o tempo todo.
Hora do almoço. Chegam todos para o desejado almoço. A trintona com o crioulo, abraçadinhos agora. Em certo momento abriram o isopor e surgem dois frangos assados; foi quando ela percebeu que aquela falta de dentes na boca de seu parceiro tinha uma grande utilidade:
Numa fração de segundos ele enfiava uma coxa de frango inteira na boca e só puxava o ossinho do meio – as presas faziam o resto. O osso saia limpinho e era só mastigar o que os caninos detiveram. Ela olhava como quem admirava a eficiência e pensava nos frangos que poderiam dividir juntos até que a morte os separasse, na tristeza e na alegria
E tome batidinha de vinho com abacaxi, que agora lembrava vinho quente de quermesse. Talvez por isso, as velhinhas mandaram ver. Certo momento um rapaz oferece:
- Dou cem mil cruzeiros para quem achar meu relógio! Fui ver se era à prova d’água mesmo e acho que o perdi mais ou menos na direção daquele navio, numa onda alta... Quem sabe mergulhar?
Ao que alguém respondeu:
- Vou tentar. Me dá 150 anos para encontrar?
Tarde passando, alegria cada vez maior e a hora voltar. Todos cabisbaixos, chateados por um domingo tão cheio de emoções, ter sido tão rápido, tão fugaz. Dona Iracema tentando entender como ninguém, durante todo o dia, havia sequer procurado um banheiro. Não teve notícia de um único xixi.
Dois garrafões de água serviram para tirar o sal de todo mundo. Os maiôs, biquínis, etc, já deveriam ter secado – portanto - o melhor negócio era vestir a roupa por cima mesmo. Agora, Rogério sentava-se junto com a oncinha, enquanto eu cuidava da tarântula, alegres pelo bom entrosamento.
O casal continuava suspirando entre barulhos de bocas molhadas, escondidos lá no fundão como sempre.
- ...moro em Jaçanããããããã...
Mais batida - naquela temperatura que curaria pneumonia numa única dose. Cada um que se levantava, aquela marca de roupa molhada por baixo, mostrando uma sexy combinação de calças Lee e sungas molhadas, ou vestidinhos com biquínis. Até que, na subida da serra, começaram as dores de barriga e ânsias de vômito com umas seis ou sete paradas, excluindo as fervidas de radiador. Eu e meu amigo ríamos muito. Rimos mais ainda quando soubemos mais tarde que a ânsia de vômito da namoradinha (aquela do fundão) durou uns 3 meses. Casaram-se logo e a menina recebeu o nome de “Estrela dos Mares” - Stella Maris. Nunca soubemos se por ironia ou por inspiração.
-...e além disso, mulher, tem outras coisas...
As senhoras vieram agradecendo a Deus e perdoando as falhas de todos. As filhas do juiz nos fizeram justiça e nunca mais quiseram saber de mim ou do Rogério. Vibrei quando assisti o casamento da Trintona, agora ex-encalhada, numa coincidência de cerimônia (para eles) e missa das sete (para mim). Tocava a marcha nupcial, mas eu só conseguia ouvir:
- Sô filho único... tenho minha casa pra olhar... eu num posso ficar...
Aquele verão, posso garantir, jamais houve outro igual.
texto: paulo moreira
imagem: internet

domingo, 8 de novembro de 2009

Oceano

Caminhava pela praia, a mente ia e vinha como que acompanhando o ritmo das ondas. Aqueles quadris eram assim: por vezes, mar agitado e ansioso, terminando sempre por uma explosão incontrolável – água encontrando as pedras – corpos explodindo amor; d’outras, calmo e compassado, imitando um berço imaginário, balouçando-se até encontrar repouso no sono.
Lembrava daquele alguém com o desespero dos sem razão e gritou ao mar aquele nome, pedindo ao vento levasse os sonhos e sons até o limite do horizonte, mil vezes. Até enrouquecer e quase enlouquecer.
Imaginava aquele amor à semelhança do oceano. Pela imensidão incalculável de tanto mar profundo; por tanto e profundo amar. E pediu a todos os deuses possíveis e impossíveis aquele amor de volta, rogando a si, o mesmo milagre do refluxo das águas inquietas.
Viu-se naqueles braços novamente e mais uma vez a sensação de estar inundado daquele alguém, como sempre, a quase afogar-se em seus próprios uivos misturados como salivas e secreções.
Olhou o céu e as estrelas e comparou-as à mesma aura que iluminava o quarto em cada mágica do amor. Do prazer cintilante e do suave brilho dos olhos cor de lua cheia, na tranqüilidade do sereno carinho após unhas cravadas, firmes ataques e armadilhas, luta e suor – que culminavam no quase desmaio feliz dos que venceram juntos a mesma doce batalha. Dos momentos em que faziam-se cúmplices contra as mesmas tempestades. Estava agora em total nulidade. Naufragara. Havia perdido sua embarcação, bússola e alimento. Junto a eles, sonhos, esperanças, razão de viver. Fora-se o tempo.
Imaginou as conchas e teve a lembrança dos dois dormindo em forma de. Lembrou-se das mãos que tomaram forma de concha em seu jeito de afagar e esboçou um sorriso. Quais seios, no mar, moldariam as conchas? Conchas no ouvido, revelam os suspiros e segredos do mar.
Uma lágrima escorreu até sua boca e sentiu aquele gosto salgado de pele. Não. Aquele corpo não era salgado. Era um agridoce único ao qual seu paladar se acostumara. Mar e amor não se explica o paladar, pensou. Lembrou das bocas milhares em que procurou, alucinado, aquele gosto e mortificou-se por ter, em tantos corpos, imaginado-se sempre estar amando aquele mesmo. Entre tantos gritos, ter ouvido a mesma voz. Entre estar vivo e ter morrido tantas vezes.
Reviveu os momentos em que, anos atrás, pensou todas as mesmas coisas e pediu a Deus; aos senhores e senhoras dos oceanos - com desespero, com angústia – a volta daquele ser amado. De espírito despido e inocente, suplicou como o mais desvalido dos mortais. Foi atendido.
Sabia que o mar devolvera-lhe o que julgava perdido. E viveu anos de ilusão, pensando estar feliz ao lado daquela mesma pessoa. Para um dia mais tarde, descobrir-se não amado e quem estava ao seu lado poderia ser uma pedra, um galho, uma gaivota morta na areia. Seria indiferente. Seu espírito virou lamento mudo.
Tinha consciência que tudo que as águas engolem, devolvem. Mas os seres vivos, devolve-os apenas corpos, carcaças. Tivera de volta, o corpo frio e rígido de seu amor, assim como cada gesto e atitude. Percebia, na rotina do dia-a-dia, que a essência havia se perdido. Os carinhos, os sorrisos, a cumplicidade, os filhos jamais vieram ou foram os mesmos. O oceano houvera entregado muito pouco do que levara. Nada e nunca voltaram a ter a mesma alma, percebeu.
Insano, continuou caminhando mar adentro. Agora iria, finalmente ao encontro daquele ser amado. Encontraria na escuridão das águas profundas a essência daquela alma e a ela se juntaria para sempre, como sempre lamentou ter sonhado.
E caminhou, caminhou. Rumo ao horizonte das águas e seu reino. Para não mais precisar caminhar.
.
texto: paulo moreira
imagem: olhares.com - portugal

terça-feira, 3 de novembro de 2009

Traição

imagem: fernando cesar - olhares.com - portugal