A cena foi muito rápida. Voltava para casa num desses finais de tarde com muita pressa, dessas sem explicação, típica de paulistano. Na avenida, com seis faixas de rolamento de veículos em cada sentido, todos vinham numa velocidade bem alta.
De repente, o motorista do carro da faixa ao lado, pouco mais à minha frente, começa desesperadamente a fazer gestos com a mão para fora, pedindo redução de velocidade. Imediatamente meu pé foi para o freio e imitei-lhe o gesto, pedindo o mesmo aos outros. Assim, sucessivamente, todos fizeram o mesmo e os carros foram parando, um a um.
Com o braço esquerdo estendido para baixo e a palma da mão em direção ao chão, o cego fazia um sereno gesto de “por favor, espere um pouquinho” e atravessava, com toda a paz do mundo, aquela enormidade de avenida - munido de uma bengala e confiança nas pessoas. Certamente, com fé em Deus também. Simultaneamente, balançava a cabeça e era possível ler em seus lábios a pronúncia do “muito obrigado”.
Por uns dois minutos, ficamos parados e abobados vendo aquela cena, até que ele terminasse sua tranquila travessia. Olhávamos uns para os outros com cara de quem não sabe que cara fazer e retomávamos, movimentando os carros vagarosamente, rumo aos nossos destinos.
Aquele homem havia conseguido o que nem mesmo um guarda uniformizado e com um simples apito conseguiria. Com um apito e uma metralhadora, talvez. Quem conhece uma cidade como São Paulo, sabe exatamente a proporção do que estou dizendo.
Aquele homem havia conseguido o que nem mesmo um guarda uniformizado e com um simples apito conseguiria. Com um apito e uma metralhadora, talvez. Quem conhece uma cidade como São Paulo, sabe exatamente a proporção do que estou dizendo.
Pernas trêmulas, mal consegui engatar a marcha e entrar na primeira travessa para estacionar. Debrucei sobre o volante e comecei a chorar. Chorei muito e, ao ser questionado por uma moça sobre a razão daquele choro incontrolado, apenas murmurava:
- Deus, o que é justo? O que é justo?
O que mais mexia com meus sentimentos era a dependência do cego da boa vontade das pessoas e da confiança dele no ser humano, afinal, qualquer um poderia não ter se dado conta do que acontecia e tê-lo atropelado. Uma desatenção mudaria seu destino e o destino de outras pessoas. Cada pensamento sobre aquela fragilidade e exposição ao perigo me emociona até hoje. A cegueira foi sempre algo que mexeu profundamente comigo. Ambas.
A propósito de alguma eventual interpretação diversa, uso a expressão “cego”, em vez de “deficiente visual”, por achá-la mais adequada. Na razão direta em que não gostaria de ser tratado como um “deficiente de visão mental”; prefiro ser chamado de burro. Doar órgãos e amar o ser humano parece-me politicamente mais correto e eficiente, que mudar nomenclaturas. Palavras podem servir de lentes para o espírito. Atitudes curam lá e cá.
Voltando ao fato.Onde já se viu fazer uma coisa daquelas? Uma pessoa com visão não ousaria jamais aquilo. Por que razão ele teria feito aquilo? Pressa, emergência, idiotice? Mas, de tudo, o que menos entendia era a sua calma e serenidade.
Num certo momento, passamos a ter uma nova visão das coisas. Não que a atitude daquele homem fosse absolutamente correta, mas provoca algumas reflexões. Tantas vezes na vida deparamos com o sofrimento alheio e sequer reduzimos a marcha. Quantos amores, quanto querer bem perdidos em nossa estrada. E lamentamos, lamentamos.
Somos desconfiados do sentimento, do agir, do pensar, do falar, do viver – entre outras coisas – de quem nos cerca. Poderíamos ter atravessado nossos caminhos de uma maneira mais tranqüila, mais serena. Ter aquela postura humilde e ao mesmo tempo solene que todo cego possui. Essa postura é quase única, talvez pelo fato de precisarem enxergar além do que nós, pobres enxergantes, possamos.
Imagino a alegria daquele cego ao se saber do outro lado, são e salvo.
Maior que o medo de ter seguido em frente, teve a mágica sensação de que ter confiado no ser humano e ter-se exposto, valeu muito. Valeu tudo. Sempre vale.
As vezes em que morremos nas calçadas do existir, acabam sendo bem pior que ter seguido em frente. Podemos ter decepções, mas nada que supere a alegria de sentir daqueles que nos cercam, suas surpreendentes atitudes. Maravilhosa descoberta.
É preciso amar e acreditar em quem está junto de nós. É preciso saber que o mundo é cheio de vielas e ruas escuras, mas escolher avenidas e atravessá-las sem medo é obrigatório. Coração não possue olhos de enxergar. Entretanto, tudo vê.Costumo brincar, dizendo que fazer amor nada mais é que dois corpos conversando em Braille.
Percebi que, naqueles dias, chorei por um homem cego. Depois, dei por mim e, vi que continuo chorando por um homem cego. Com vergonha das economias de sentimentos, me propus escolher e atravessar meus caminhos com maior confiança na escolha.
Pela ousadia, pode ser que vez por outra, a gente venha a se encontrar em algum hospital, com alguns arranhões e hematomas. Orgulhosos porque, grave ou não, fomos atropelados na maior avenida do mundo:
Uma avenida chamada Amor.
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texto: paulo moreira
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Complementando o texto:
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Como tratar deficientes visuais corretamente
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- Ofereça sua ajuda sempre que um(a) cego(a) parecer necessitar. Mas não ajude sem que ele(a) concorde;
- Sempre pergunte antes de agir. Se você não souber em que e como ajudar, peça explicações de como fazê-lo;
- Para guiar uma pessoa cega, ela deve segurar-lhe pelo braço, de preferência no cotovelo ou no ombro. Não a pegue pelo braço: além de perigoso, isso pode assustá-la. À medida que encontrar degraus, meios fios e outros obstáculos, vá orientando-a. Em lugares muito estreitos para duas pessoas caminharem lado a lado, ponha seu braço para trás de modo que a pessoa cega possa lhe seguir;
- Ao sair de uma sala, informe o(a) cego(a); é desagradável para qualquer pessoa falar para o vazio. Não evite palavras como "cego", "olhar" ou "ver", os(as) cegos(as) também as usam;
- Ao explicar direções para uma pessoa cega, seja o mais claro e específico possível. Não se esqueça de indicar os obstáculos que existem no caminho que ela vai seguir. Como algumas pessoas cegas não têm memória visual, não se esqueça de indicar as distâncias em metros (por exemplo: "uns vinte metros para a frente"). Mas se você não sabe corretamente como direcionar uma pessoa cega, diga algo como "eu gostaria de lhe ajudar, mas como é que devo descrever as coisas?", ele(a) lhe dirá;
- Ao guiar um(a) cego(a) para uma cadeira, guie a sua mão para o encosto da cadeira, e informe se a cadeira tem braços ou não;Num restaurante, é de boa educação que você leia o cardápio e os preços;Uma pessoa cega é como você, só que não enxerga; trate-a com o mesmo respeito que você trata uma pessoa que enxerga;
- Quando você tiver em contato social ou trabalhando com pessoas portadoras de deficiência visual, não pense que a cegueira possa vir a ser problema e, por isso, nunca as exclua de participar plenamente, nem procure minimizar tal participação. Deixe que decidam como participar. Proporcione à pessoa cega a chance de ter sucesso ou de falhar, tal como qualquer outra pessoa;
- Quando são pessoas com visão subnormal (alguém com sérias dificuldades visuais), proceda com o mesmo respeito, perguntando-lhe se precisa de ajuda, quando notar que ela está em dificuldade.
Fonte das informações complementares: Associação de Cegos Louis Braille, site:
Um comentário:
Sem palavras...uma avenida de amor e paz para todos nós...seguimos em frente!
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